Sítio

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Quando era pequeno sempre me perguntava onde certas pessoas, como os funcionários dos pedágios ou os frentistas de posto de beira de estrada moravam, ou como elas faziam para ir para casa. E assim que vim trabalhar como caseiro aqui do sítio cheguei a uma resposta. Sempre que vou à cidade mais próxima e encontro meus amigos sei onde aquelas pessoas moram. Sou caseiro de um sítio num lugar que pode ser considerado qualquer lugar. Pode ser interior de São Paulo, pode ser periferia, pode ser realmente qualquer coisa. Prefiro classificar como preenchimento do espaço de terra que há entre as enormes propriedades dessa gente cheia da grana. Ou como eles chamam, sítios. Bom, já que resolvi contar minha história, vou me apresentar: o meu nome não importa, mas sou casado, com uma filhinha de dois anos. Entristece-me muito lembrar delas. O que terá acontecido? Por que será que ninguém mais vem aqui? Será que elas fugiram? Não, é muito pouco provável… A minha solidão deve ser parte desse pesadelo que venho vivendo nas últimas semanas. O local onde moro e trabalho é uma propriedade da família Gomes. Como é de se esperar, eles têm muito dinheiro. A propriedade é cercada por uma longa e extensa cerca de arames farpados reforçada por fios eletrificados que costumavam ser ligados apenas durante a noite. A casa também está protegida por um alarme. Minha função aqui era basicamente manter o local em ordem, o que fazia com grande competência; limpava a piscina, cortava a grama, fazia pequenos, médios e grandes reparos, e minha mulher limpava a casa. Os Gomes vinham para cá quase todo fim de semana até algumas semanas atrás. Deixe-me esclarecer algo: no último fim de semana que vi minha mulher e minha filha, e também qualquer outra pessoa, apenas a filha mais velha dos Gomes e seus amigos tinham vindo – acho que era alguma coisa a ver com formatura, sei lá, coisa de rico. Naquela tarde minha esposa foi com minha filha para a casa de uma amiga em São Paulo e, como combinado, só voltariam no outro dia pela manhã para continuar me ajudando com os deveres. Até agora não sei se a viagem delas foi boa ou ruim. Pelo menos não vi nada de terrível acontecer a elas, caso algo tenha acontecido. Na realidade não vi nada de terrível acontecer com ninguém, apenas senti. Naquela noite, quando eram mais ou menos vinte e três horas, subi à casa principal e avisei que estava ligando a cerca elétrica; até aí, nada de novo, era habitual. A cerca faz um apito ao ser ligada e dois ao ser desligada. O mesmo ocorre com o alarme da casa. Os sons são parecidos, mas para mim, que ouço isso todo dia, são absolutamente diferentes. Quando estava deitado já na cama, esperando o sono chegar – é difícil quando meus maiores tesouros não estão ao meu alcance -, eram umas três da manhã, ouvi o alarme da casa ser ativado. Na manhã seguinte a cerca não queria desligar por nada nesse mundo, então fui avisar aos jovens para não se aproximarem ou seriam eletrocutados. Espantou-me quando interfonei e ninguém atendeu. Então, continuei minhas obrigações. Quando era meio-dia, achei estranho ninguém ainda ter acordado, mas eles deviam estar todos de ressaca. O que mais me preocupava era se minha mulher encostasse na cerca. Então fiquei de guarda por uma hora. Como já era hora do almoço, resolvi ligar – afinal, elas deveriam estar aqui de manhã. O telefone estava mudo. Devia ser alguma pane. Quando já passava das três minha preocupação já era grande. Onde estavam minhas queridas? E, tenha paciência, como podem dormir tanto esses filhinhos-de-papai? Resolvi que iria até lá tentar em outro telefone. Bom, teria que me cuidar pra não disparar o alarme – seria triste o resultado e o pânico dessa juventude e ainda mais a culpa que levaria mais tarde. Cheguei bem próximo à janela da sala. Tudo estava exatamente como eles provavelmente haviam deixado. Mas será que todos haviam ido dormir nos quartos? Poxa, a casa era grande e os quartos também, mas isso já era um exagero. Eram mais de quinze pessoas, sem contar as malas cheias de coisas que provavelmente não teriam tempo de usar nem em um mês. Dei a volta na casa pela varanda, tomando cuidado com os fios de alta tensão, e espiei pela janela do quarto. Minha visão estava bastante dificultada pelas venezianas, mas me contorcendo um tanto, ainda pude ver o interior dos quartos para saber que estavam vazios. Que diabos! Seria possível que… Não, a ideia era muito absurda. Que tipo de gente faria isso? Voltei pra varanda e sentei-me no chão de costas para a parede, de onde podia ver mato e árvores e mais mato e árvores. A casa mais próxima ficava não muito longe, mas infelizmente atrás da colina, o que impedia a comunicação, nem que fosse visual. Voltei a pensar nas minhas queridas e na absurda possibilidade que me ocorrera há pouco tempo, e outra já me vinha a cabeça, bem mais provável. Levantei-me e fui pegar a escada de madeira; seria difícil, mas tinha que ser feito. Colocada a escada no local certo, reforçada com pedras e uma cadeira. Se caísse, seria fatal. Seria possível que aquele monte de adolescentes cheios de frescura resolveu passar a noite no sótão? Lá era quente e abafado até no inverno – imagina para quinze, vinte adolescentes e ainda mais nessa época do ano. Desloquei uma telha, fazendo um barulho inacreditável; se tivesse alguém lá reagiria desesperadamente, o que não aconteceu. Enfiei a cabeça lá dentro. O calor quase fritou minha cara. Quando meus olhos acostumaram, notei sem surpresa estar vazio. Fechei a telha o melhor que pude e desci. Pensando agora, me pergunto por que guardei a escada? Não acho que agora faz muita diferença. Só me restou pensar na primeira coisa que me ocorrera, todos eles de alguma forma saíram durante a noite e de alguma forma miraculosa conseguiram desligar, sem que notasse, os inúmeros alarmes – o que considero, mesmo agora, um absurdo, quase uma ofensa à minha percepção. Bom, mesmo que tenham conseguido isso, não se explica o desaparecimento de qualquer outro ser humano das redondezas, ou as minhas queridas não terem voltado, ou o telefone mudo, ou os alarmes impossíveis de desligar. E o pior de tudo, que nem tenho coragem de pensar… Por quê? E por que eu…

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